La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

"Una realidad invisible anda por todo el subterráneo, cuyo estrepitoso negror rechinante, sucio y cálido, apenas se siente. Todos han desejado sus periódicos, sus gomas y sus gritos; están absortos, como en una pesadilla de cansancio y de tristeza, en esta rosa blanca que la negra exalta y que es como la conciencia del subterráneo." - La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Achados e perdidos de Valquíria.

Todo mundo dizia que Valquíria era excêntria, difícil de lidar. Ela bem sabia que a maioria das pessoas que pensavam isso dela mal sabiam o significado do que pronunciavam. Ela sim. Sabia bem das palavras. Valquíria podia dobrar, recortar, multiplicar, multifacetar uma unica palavra, desdobrá-la em uma nova língua se fosse o caso. Ela tinha um caso de amor com as palavras. Mas caso era o que as pessoas gostavam de fazer com Valquíria. As vezes pouco outras muito, até demais. De pouco em muito e de muito em pouco, Valquíria foi se acostumando com a pouca importância dessas pessoas em sua vida. Isso era o que ela gostava de dizer pra si mesma. Mas a verdade é que Valquíria sabia, que mesmo não concordando com as ideias dessas pessoas, ela precisava delas. Nem que ao menos fosse como parâmetro para saber que era melhor. Não que ela fosse o tipo esnobe. Longe disso. No fundo ela não se achava melhor que ninguém, só diferente.  Algumas vezes as pessoas achavam que ela era a mulher mais forte do mundo, as vezes, até ela acreditava por alguns instantes nisso...gostava mesmo que pensassem assim. Mas com o coração mareado ela bem sabia quão frágil era a menina lá dentro escondida, suscetível, exposta, encolhida a qualquer grito ou gesto mais forte que o seu. Isso bastava pra Valquíria se desmanchar igual sorvete esquecido na pia. Era assim mesmo que a menina tão forte e tão frágil se sentia de vez em quando, igual uma bola de sorvete de abacaxi, derrubada da casquinha. Eduardo chamava Valquíria de Val, dizia que era mais curto, mais fácil e gostava do som. Valquíria pensava e pensando se encaracolava pra longe muito longe e nesse longe, ouvia o Eduardo chamando-a de Val. O som lembrava válvula. É... ela achava mesmo que fosse uma válvula para as angústias do Eduardo. As vezes ela pensava que ele ficava com ela por comodismo... Eram tão diferentes.. Mas aí ela se encontrava nesse longe e lembrava que ele gostava do som de Val, mas então ela lembrava que Val lembrava tchau e ela achava mesmo que a qualquer instante eles iriam terminar. E aí Val, Valquíria... ficava triste, tão triste de murchar a alma igual uva passa. Valquiria não gostava de uva passa em panetone, mas ela gostava um bocado ao mesmo tempo em que ficava triste, em pensar que voltaria a ser dona do próprio nariz, igual chafariz de praça. Só que com essa mania de se perder nas palavras num longe quase infinito, ela já não tinha certeza do tamanho desse bocado que envolvia Eduardo.
Eduardo não se perdia nem longe, nem perto. Mas também não se achava. Eduardo só se perdia quando Valquiria ameaçava largar ele. Mas também era aí que Eduardo se achava e mostrava uma fenda que ela gostava de espiar. E espiando lá se perdia Valquiria de novo nos seus longes alí, bem perto do Eduardo.
Ela queria tanto que ele se perdesse com ela só um pouco. Não! Ela queria que ele se perdesse um bom tanto com ela. Fora assim, numa perdição que os dois se apaixonaram. Mas o tempo passou... Valquiria decidiu que queria mesmo se perder nas palavras. Eduardo por um quê aqui por um quê lá, achou melhor ficar em terra firme e se achar em outros prumos. Aquilo doía fundo no mareado de Valquíria. Mas quando fechava os olhos só via os dois, perdidos e separados. E quando Eduardo abria os olhos via os dois bem achados, sem riscos e juntos. Logo os riscos que enchiam a barriga de Valquíria de frios...logo os riscos!
Se Valquíria não era nem queria ser achada. Se Eduardo não queria mais se perder. Valquíria não sabia o que fazer.  Eduardo sabia o que não devia fazer, fazia mesmo assim, sem querer. Mas Eduardo não gostava de se pensar sem a Valquíria porque aí ele ficava todo perdido e isso dava um medo que gelava o umbigo do Eduardo e ele nao gostava disso não. Valquíria só sabia que como o ar lhe era essencial, assim também lhe era o frio do desconhecido em sua barriga.  O tempo não parou. Eduardo seguiu o planejado.  Valquiria se perdeu deliciosamente em vários caminhos e tudo que planejou concluiu o contrário. Também se encontrou. E tornou a se perder. Até entender que terra firme jamais seria eterna para seus pés. Sua morada era o mundo. Seu alimento, o da alma. Sua vida, a de cigana.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A menina e a rosa

Sua rosa era vermelha. Cor viva que designava o ardor das paixões e o espesso e quente sangue que lhe percorria o corpo. As pétalas delicadas e aveludadas, de uma maciez que ao mesmo passo parecia frágil e extremamente densa na costura de sua tessitura.
Já havia sim apreciado o perfume de várias flores, mas sequer havia considerado a possibilidade de instaurar - como a brecha que faz uma faca ao dilacerar um corpo – a sensação de uma dependência assim nunca antes sentida.
Já na primeira vez que a viu, o vermelho intenso lhe corou a face numa quentura que começava pela ponta dos pensamentos, passava pelos fios de cabelos e nesse passeio chegava até a última ponta da última unha do último dedo do pé.
Depois do fogo vinha o vento que erguia todos os pelos e cabelos num arrepio infinito, como quem acaricia delicadamente um filhote. E dessa mistura de sensações brotou no coração indomável da menina um desejo e um medo sem tamanho.
Jamais suas vistas vividas avistaram antes rosa tão exuberante, até sabia que existiam outras parecidas, mas nunca antes uma num conjunto de toque, cor, perfume, ali tão perto, tão para ela.
Antes que pudesse duvidar, seu batimento cardíaco mais parecia titilar dentro de sua cabeça, tamanha voracidade a que se enraizava dentro de si. Quando posta assim, contra a parede pelos truques do destino, diante daquela rosa, imediatamente se entorpeceu e soube que tinha brotado dentro dela o desatino. Um carro contramão desenfreado, descontrolado que só sabia seguir em frente nessa insanidade deliciosa.
Sim. Mas nem só de delícias vive o desatino. E no momento seguinte ao entorpecimento a menina pensou logo:
-“E se eu não servir? E se ela não gostar de mim?”
Já perdera a conta de quantas voltas tinha dado o relógio durante as milhares de flores que apareceram para enfeitar e dar corda ao seu caminho. Ela até botava reparo em uma aqui e outra ali, mas a verdade é que nunca tivera disposição para cuidar de nenhuma delas. Ou enjoava logo do perfume, ou achava-as muito metidas, chatas; cansavam suas vistas pelo excesso de cores ou pior – por só saberem viver num entediante clichê mais detestável que o preto e branco: o cinza.
Sim, porque o cinza era das cores a mais fraca, era a que ficava sempre em cima do muro numa melancolia besta. Preferia mesmo era deixar o cinza para os dias de chuva, mas algumas flores eram tão bobinhas que não entendiam a maestria da chuva e se pintavam de cinza apagando a própria cor só para agradar a menina. E isso dava um cansaço danado nela, uma vontade de cortá-las fora.
E era mesmo o que ela acabava fazendo. Se as flores insistiam em aparecer em sua porta, ela dava um jeito logo de pegar a tesoura e dar um fim naquele brotamento. É por isso que gostava tanto das amigas pimentas e espadas de São - Jorge que além de devolverem vida à menina, protegiam-na e alegravam sua casa.
No entanto, aquela rosa tão imponente em sua beleza radiante a seduzira no exato instante em que olhos e pétalas se cruzaram. Estava decidida a tomá-la para si e assim cuidá-la com a devida atenção até o último de seus dias. Não saberia quanto tempo viveria, nunca quisera uma vida longa, mas olhar para aquela rosa era tão prazeroso que desejava trapacear o tempo para ganhar mais desatinos ao lado dela.
Foi nesse dia que a menina descobriu que tinha um coração desembestado. Foi por conta da rosa que ela sentiu todos os cheiros e gostos e toques do mundo inteiro ao mesmo tempo deixando-a com uma falta de ar exacerbada e um frio na barriga de quem pula lombada alta. E nesse caleidoscópio imagético de vivências e experiências, foi se tornando refém desse quase culto à rosa. Não. Era mais que uma devoção, era um amor de amantes cúmplices, desses amores em que palavras tão pouco bastam como são desnecessárias. Os olhos sim tagarelam sem parar por horas a fio enquanto o amarelo dos fios do cabelo da menina passeia pelo vermelho das pétalas da rosa.
E eis que dessa mistura de cores nasceu um amor como nunca antes visto, um amor tão fundo que não se sabia mais onde começava a menina e onde terminava a rosa. Ela chamou-a Zeus como a imponência do deus grego. E assim como os amantes gastavam horas a admirar a lua, a menina dedicava todos os versos e suspiros à rosa – Zeus. E dessa forma foram vivendo, juntos, menina e Zeus, felizes durante um tempo incontável.
E lá vem novamente o desatino descompassado atrás do amor. Como todo amor impossível de filme e livros, o amor dos dois também teve sua tragédia. Um dia a menina, que só tocara as pétalas de Zeus, teve muito medo de perdê-lo e num surto de insegurança e angústia agarrou com todas as suas forças a rosa e sentiu uma dor aguda dessas que fazem a gente perder o controle sob essa água salgada que salta dos olhos. Gota a gota, como trapezistas, as lágrimas foram pulando e descendo como que num escorregador gigante a face rubra da menina.
Zeus, petrificado por ver ferir sua amada só fazia chorar um desespero angustiante que partia o coração de quem visse a cena. Seu perfume inebriante se transformara, assim, num odor nauseante e ao passo que chorava, desbotava e o vermelho espesso escorria por seus espinhos misturando-se com o sangue da menina.
Zeus tinha agora um amarelo envelhecido. O velho amarelo que se costuma adquirir só com muito tempo. Com ele, ganhara a maturidade de quem valoriza uma preciosidade como o que vivia naquele momento. Sabia bem que se por ventura o destino lhe arrancasse a menina de suas pétalas jamais encontraria outra “dona” por quem viesse a desbotar.
O desatino - sentindo-se culpado pela dor da menina e pelo desbotamento de Zeus - recorreu ao sol e a lua e pediu que misturassem respectivamente sua quentura e frieza num pó mágico capaz de transformar a menina. A dor dos espinhos rasgando sua pele fora tanta que antes mesmo de sentir-se culpada ou triste, adormeceu, assim, com os espinhos fincados em suas mãos.
Ouviu ao fundo um flamenco espanhol que lhe devolveu quentura ao corpo - o desatino quando quer agradar, leva as loucuras às últimas conseqüências - ela podia bem reconhecer esse seu companheiro de longa jornada. Também ela gostava de flertar com a insanidade, a realidade às vezes era muito chata para se viver e muito dura para se agüentar. É claro que isso era só de vez em quando, não podia se dar ao luxo de enlouquecer, tinha muita coisa para dar conta antes disso.
Sentiu um pó em seu nariz que a fez espirrar. Espirrava com freqüência, isso era certo, mas esse espirro a fez acordar de supetão e antes que pudesse pronunciar qualquer palavra se dava conta de que havia se transformado em rosa. Uma rosa vermelha, imponente e exuberante tal qual seu amado Zeus.
Mas o sol e a lua perceberam que agora os amantes não podiam se tocar e teriam de conviver com a desgraça da saudade por toda a eternidade. Sendo assim, sol e lua que bem entendiam do mundo dos amantes, entraram num novo acordo onde por todos os dias de todos os anos que os amantes vivessem: sol regeria as 12 horas diurnas e lua as 12 horas noturnas banhando o casal com um manto de luz e calor.
Quando pela primeira vez menina e Zeus se tocaram como homem e mulher, tiveram a certeza de que jamais, jamais se separariam com ou sem espinhos, com ou sem desatino, com ou sem sol e lua, porque mais forte e maior do que qualquer coisa que existisse em toda a metafísica ou racionalidade era a plena sensação de uma felicidade incomparável e indescritivelmente quente com menina e Zeus, juntos.
Quem via a história de longe não entendia mesmo muito bem e achava tudo uma doidice descabida, mas tudo bem... Era assim e por isso mesmo que a loucura de um amor eterno e cúmplice era destinado às poucas criaturas que fossem fortes o bastante para se deliciar com a insana quentura da paixão sem se consumir por completo, pelo contrário, se revigorando a cada nova faísca.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

pra Mim

Exausto

Adélia Prado






Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

MATTINA - Giuseppe Ungaretti


    Santa Maria la Longa il 26 gennaio 1917.

Mattina

"M'illumino d'Immenso."

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Experiência

Os pés brancos e macios do inverno estavam agora despidos, murchos, pele fina caminhando sobre aquele amontoado de pedregulhos que iam aos poucos perfurando as camadas da epiderme, manchando o que antes era um monocromático marrom, agora, de um vermelho vivo, perfumado.
Não pensava na dor, a dor maior não era a física, essa bem sabia que passaria, com mais ou sem demora. Difícil era sangrar por dentro. Seguiu naquela peregrinação solitária sem a demanda da platéia para testemunhar um auto-flagelo, a penitência era aquietar sua angústia que ladrava, esperneava, rangia os dentes da boca do estômago, perfurava todos os órgãos internos – um a um – lentamente, numa morte assistida e sem cura.
A cura era a morte, a morte apenas. É na morte que se depara com o clarão do mundo, com a grande verdade, com cálice sagrado e os segredos da humanidade, com as respostas para todas as perguntas perseguidas ao longo dos anos – sejam muitos ou poucos – vividos, mas o certo, é que provavelmente o que se verá é um hediondo, besta: NADA, gigante, gargalhando, cuspindo saliva na face de quem o encara.
Caminha-se e busca-se a vida toda, entre o bem e o mal chegar ao dia em que nos depararemos com a verdade e ei-la: o absoluto nada. E ao contrário do senso comum, pior que sentar no colo do capeta é não ter no que se agarrar, entre céu e inferno, entre os piores pesadelos, há uma coisa aterrorizantemente pior: o nada. Só o nada nadifica. Disso bem sabia... Entre voltar à origem preferiu a cegueira. Deu um passo para trás e assim refez todo o caminho de volta, cabisbaixo, recolhendo gota-a-gota, titilando em seus ouvidos, aquilo que já não estava mais ali. Já não era.

sexta-feira, 14 de maio de 2010


Je Ne Veux Pas Travailler


Pink Martini
 
 
Ma chambre a la forme d'une cage


Le soleil passe son bras par la fenêtre

Les chasseurs à ma porte

Comme des petits soldats

Qui veulent me prendre
Je ne veux pas travailler


Je ne veux pas déjeuner

Je veux seulement oublier

Et puis je fume



Déjà j'ai connu le parfum de l'amour

Un millions de roses

N'embaumeraient pas autant

Maintenant une seule fleur

Dans mes entourages

Me rend malade

Je ne suis pas fière de ça


Vie qui veut me tuer

C'est magnifique

Etre sympathique

Mais je ne le connais jamais

terça-feira, 16 de março de 2010

quarta-feira, 3 de março de 2010

O meu irmão

Não existe amor morno. O amor anda junto ao desassossego. Pula com o coração no peito da gente como gato assustado. É só pensar em perdê-lo e pronto! Lá se vai outro gato descendo arranhando, rasgando a garganta da gente. Vai ver é isso, o amor é um bando de gatos.

Tem amor de todo tipo e para todos os gostos. Amor de pai, de mãe, amor de amante, amor de colégio, amor platônico, amor de amiga, amor de bicho. Mas tem um tipo de amor que deixa as mulheres mexidas por dentro num carinho que tem um começo assim, bem puxado, mas o fim ninguém sabe, ninguém nunca achou. Amor de irmão. E note que amor entre irmão e irmã é completamente diferente de amor entre irmãs ou irmãos.

A irmã independente de ser mais nova ou não, toma as dores todas do mundo pelo irmão, coloca-se como mãe, como responsável, num carinho abismado de intenso. Já o irmão, geralmente mais viril, tenta proteger a irmã das dores do mundo, mas quando as têm é pro colo dela que ele se aconchega e chora e ri e dorme.

Amor de irmão deixa a gente, mulher, com o coração sempre apertado. É a saudade que chega do nada sem avisar, é a infância que prega peças puxando pra fora da cabeça alguma lembrança com cheiro de algodão doce ou de castigo. É a melancolia que chega dançando com as fotos das festas em família, dos filmes, dos porres, das traquinagens, dos chocolates, dos presentes, dos medos, das alegrias, tatuagens, brinquedos, namorados, amigas, namoradas, intrigas, família! Irmão!

Irmãos e Irmãs se completam numa amizade cúmplice pra vida toda. Esta e outras se por ventura vierem, porque o vínculo que se forma é indestrutível e eles se tornam, então, um só.

Amor de irmão é engraçado... Porque o irmão da gente nunca será igual a nenhuma outra pessoa no mundo. É mais, é sempre mais. É pra quem a gente tem vontade de correr quando se vê incapaz e com medo, ou quando temos uma novidade incrível, só pra ouvir aqueles parabéns macios de sinceridade contida e aquele abraço demorado que carrega o mundo todo confortavelmente nele.

Só com irmão a gente se encoraja a ir aos almoços chatos, nas reuniões de parentes distantes, porque a gente sabe que mesmo assim, inventaremos juntos num riso largo, um motivo, um brilho pra sermos felizes juntos. Sempre juntos. Porque não precisa mesmo complicar, não há o que se entender, amor de irmão é completo e simples, tal qual uma margarida.

Desconfio que amor de irmão não se acaba nunca. Nem muda. Pelo menos não pra menos. Desconfio que amo mais o meu irmão que a mim mesma e que se fosse preciso, sem pestanejar, emprestaria meu anjo da guarda, ou lhe daria uma das minhas 7 vidas. E olha que anjo da guarda não se empresta. E olha, que gato de rua não se arrisca a dar vidas, a troco de nada. Nada? Que nada! Dar minha vida pelo meu irmão seria a melhor forma de utilizá-la.

Desconfio que o meu amor de irmão não seja em vão. Desconfio que ele seja um anjo disfarçado de menino. Porque quando meu irmão ri, meu dia se ilumina com todas as cores do mundo e um elixir de felicidade se espalha numa fumacinha meio lilás, meio amarela e vai contagiando docemente todo o ambiente.

Talvez seja isso: talvez a minha felicidade não venha num frasco propriamente dito, venha em formato de irmão, de menino guerreiro, do bem, de menino querido, bonito, gentil e engraçado.

Desconfio que amores assim não se substituam ou se superam. Desconfio que irmãs como eu nunca teremos filhos, porque assim, infringiríamos uma das leis do universo, porque não conseguiríamos dar o amor maior aos nossos filhos – como é pra ser. Porque irmãs como eu, desconfio, já nascemos mães, mas só quando os irmãos são assim como você Fábio – a melhor pessoa que provavelmente iremos conhecer em nossa caminhada.




sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Acordes

Acordou de sopetão com um grito: MARIA! - Que se estendeu por toda a casa ecoando dentro de sua cabeça por uns 30 segundos. - Coração galopando no peito como um animal selvagem prestes a explodir a pele que o separa do mundo. Sentou-se na cama, os lençóis estavam encharcados, o cabelo desalinhado.


Apertou forte a mão contra o peito na tentativa de domar aquele movimento e acalmando-o acalmar-se a si mesma. Já era manhã, mas o celular ainda não havia despertado. Olhou em volta e sentiu-se tão intimamente observada que resolveu de imediato cobrir-se com o roupão atoalhado.

Levantou e sentiu-se novamente observada e pior: seguida. Precisava de algum tipo de som para se distrair. Pensando nisso enquanto caminhava em direção à televisão algo caiu na área de serviço. Engoliu o grito seco que não aconteceu, que fora castrado por um calafrio molhado que percorria toda sua espinha.

Respirou fundo, pensou em coisas boas. Ligou a TV e começou a trocar de canal. A boca estava muito seca. Foi até a cozinha, preparou um café preto, sentou-se no sofá vermelho e acendeu um cigarro light. Tragou como se fosse a última ação que precedesse a morte.

A morte. Não achava que a temia, temia o hiato que a separava da vida concreta. O buraco, a margem e as coisas nela contida, sempre à espreita como cães magros de bar em bar aguardando migalhas, famintos.

O amargo do café se concentrou ao fundo da língua colorindo-a de um marrom claro. Desistiu da TV. Desistiu de resistir. Foi ao banheiro. Acompanhada? Despiu-se, tomou um banho quente, demorado, como nunca, até a pele dos dedos murcharem. Com o corpo ainda molhado espalhou sem economias o óleo de banho que tanto gostava. Terminou de se secar e vestiu-se.

Não iria trabalhar hoje. Não iria estudar hoje. Não iria seguir a rotina. Não, hoje. Pegou um ônibus que a levou até uma praia onde nunca estivera antes. Caminhou sem pressa, chinelos na mão, óculos escuros e a bolsa, tudo em seu devido lugar. Os cabelos soltos caíam volte e meia sob a face. Procurou um canto, estendeu a canga e sentou-se.

Fechou os olhos como nunca. Respirou o mais fundo que pôde. O cheiro do mar parecia niná-la num carinho de colo de mãe. O barulho das ondas quebrando nas pedras puxava da memória canções que a confortavam como uma xícara de café no inverno.

Estava tão exausta, tão cansada que mal sabia o que fazer. Então decidiu não fazer nada. Ficou naquela posição, olhos fechados, alma aberta por pelo menos uma hora. Sentia seu corpo trepidar, esquentando e balançando junto com o vento, era inevitável. As mãos e pernas formigavam num calor amortecido, mas que não era de todo desconfortável, era até revigorante.

Sentiu uma boca entreaberta lhe falar bem próxima ao ouvido. Tão próxima que podia sentir o calor do hálito. Abriu os olhos. Não havia ninguém. Olhou para o outro lado e viu uma criança se aproximando, vindo em sua direção.

Os olhos fortes, azuis, fixados aos seus. Foi se aproximando sem dizer uma palavra sequer, sentou-se no pedaço da canga que restava. Retirou duas maçãs da bolsa de pano. Uma verde e outra vermelha. Mordeu com gosto a verde, o suco escorria-lhe a face rosada daquela pele tão fininha. Ofereceu-lhe a vermelha. Um gesto tão imperativo que não ousaria negar. Mordeu também e saboreou a maçã lustrosa, observando ainda o garoto, que olhava agora para o mar.

Ficaram assim, lado a lado a tarde toda. Quando o sol começou a se pôr, o menino, ainda sem uma palavra, pegou as duas mãos dela. Olhou as palmas, o verso, fechou-as e esquentou-as com as pequenas mãozinhas de pele macia. Ajeitou o cabelo daquela moça aflita e encantada, assim, atrás da orelha. Com os olhos tão fixos nos seus, Maria sentia como se tivessem conversado por horas e horas e horas.

ACORDES! Acordou de sopetão com um grito. Que se estendeu por toda a casa ecoando dentro de sua cabeça por uns 30 segundos. - Coração galopando no peito como um animal selvagem prestes a explodir a pele que o separa do mundo. Sentou-se na cama, os lençóis estavam encharcados, o cabelo desalinhado.

Apertou forte a mão contra o peito na tentativa de domar aquele movimento e acalmando-o acalmar-se a si mesma. Já era manhã, mas o celular ainda não havia despertado. Olhou para mesinha ao lado de sua cama e petrificou-se ao ver uma maçã verde e outra vermelha, mordidas.

Mas hoje não sentira medo. Hoje sentira que algo havia mudado. Não se sentia mais só do lado de cá. As mãos estavam quentes. Passou muito do seu perfume preferido: Acordes, abriu a janela e estava chovendo. Não iria seguir a rotina. Não, hoje. Pegou o guarda-chuva e saiu, assim, sem rumo, à procura dela mesma.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Nostalgia

Fico imaginando o que será que separa aquele instante pós-banho, com pijamas com cheirinho de amaciante, à meia luz no quarto, o livro ao lado, na mesinha, os olhos levemente vermelhos, cansados, fechando... Do instante quase palpável em que o tempo brinca de carrossel e em seus desdobramentos puxa a memória da gente feito mandolate e nos leva aos cantos mais quentes e aconchegantes dos anos que se passaram.


Não havia lavado os cabelos, estava tão quente que usar o secador barulhento não soava como boa idéia. Pegou o sabonete de erva-doce cremoso e gastou quase a metade, como um carinho merecido espalhando vagarosamente a espuma branca por todas as curvas do corpo.

Pegou uma toalha nova, cheirou profundamente a sensação macia como um abraço demorado. Passou o hidratante preferido de ameixa. Colocou o pijama mais macio. O quarto cheirava a lavanda.

Na cama os lençóis preferidos: lilás desbotado tinham a cor calma do sono. Ligou o abajur, pegou um livro de contos e se propôs a ler até ouvir a música que seu anjo da guarda cantava para niná-la e protegê-la dos pesadelos.

Entre uma metáfora e outra começou o carrossel. Então, deitou-se de lado, pernas encolhidas, livro abraçado e começou a lembrar do cheiro da casa da tia de bolinho de chuva em dias chuvosos. Pôde sentir o gosto macio da canela com açúcar refinado e o cheiro do café passado misturado ao do cigarro do tio. E deu uma saudade tão funda que ficou assim, marejada por dentro de um sofrimento tão duro, mas tão calmo.

Lembrou das suas duas posses de pequena: uma vaca que chamou de xuxa e um pé de jasmim ao pé da janela. Não podia descrever o prazer que lhe causava encher as mãos com os pequenos cachos secos e sentir o perfume da flor invadindo a entrada da casa. Sempre ia com o pai fazer essa tarefa de fim de tarde.

Também não pôde descrever a dor quando lhe contaram que a xuxa viraria bife. Como podiam ser tão cruéis, ela deveria morrer de velha, sentiu-se roubada, injustiçada, violada aos seus 8 anos e passou meses com repulsa de carne que poderia ser de sua amiga.

Foi se lembrando das festas da família. O avô chegando com um saco de presentes para todos os netos. Ela, a única neta, a mais ansiosa em receber logo o brinquedo, fora esquecida e lá se foi o reboliço da família toda procurando o presente da pobre da mia!

A euforia das festas juninas no colégio, com rapadura, pé-de-moleque, pipoca, música, pau-de-sebo, canjica e tantas bandeirinhas coloridas que eram quase tão lindas quanto o teto dos supermercados cheios de ovos de chocolate.

Lembrou dos cheiros tão domingueiros. Mesmo com sono, era acordada por uma felicidade tão segura de que tudo estava bem, de que estava amparada pela família de todos os horrores do mundo.

E ouvia os fandangos alegres do pai gaúcho, o cheiro de churrasco espalhado pelo bairro todo, a mãe preparando as saladas e a maionese, a corrida de fórmula 1 na TV ou qualquer outro programa esportivo e sempre, a caipira de limão como aperitivo de mão em mão.

Lembrou de quando xis salada não era almoço, era lanche de final de semana e por isso mesmo, muito mais gostoso. De quando feijão, arroz, salada e alguma carne sempre se faziam na mesa. Sentiu vergonha da pressa de sua rotina que a levava a comer macarrão rápido e tantos pratos prontos sem o gosto do tempero da avó e o pior: sem a mesa rodeada de pai, mãe, irmão, avô, avó, gato...

Começou a avaliar tudo que havia proposto a si mesma, todas as metas, todos os limites, todos os sonhos. Achava de verdade que depois que alcançasse todos, seria feliz. E quão boba pôde se sentir agora que morava sozinha, que estudava num dos melhores lugares para sua área, que era independente, que tinha virado gente grande com contas vencendo, com compras de supermercado a serem feitas, com uma casa pra ser cuidada, ai, doeu, doeu não ter um colo largo, pra deitar e chorar e fazer o tempo do relógio girar ao contrário. Como era feliz, como era feliz, meu Deus e sequer desconfiava.

Não que fosse infeliz hoje, era realizada, se sentia forte, quase plena, se sentia mulher. Aprendera muitas coisas e começara a entender hoje tantas lições que ouvira em casa. Aprendera com dor e amor. Conhecera tanta gente, cuidara de tantas e de tantas outras não conseguiu. Mas deu uma dor tão funda crescendo e petrificando dentro de si que sentiu a própria alma comprimida e latejada, febril, num desespero manso de quem não quer mais crescer, de quem quer ser pra sempre o anjinho do pai e o coração da mãe, a menina da família.

Ficou triste por uns instantes, o nó crescido e apertado na garganta molhou todo o rosto e depois o travesseiro. Levantou, fez um chá de cidreira e adoçou com um pouco de mel, lembrou que se estivesse precisando de um calmante para dormir ou descansar o peito comprimido pela gripe era isso que sua mãe faria, sentiu-se mais perto dela agora.

Voltou para cama para ler mais um pouco e lembrou de uma música que ela nem gostava tanto assim, mas cada vez que tocava ficava mexida por dentro de saudade de seu irmão. Lembrou das noites adentro com filmes de terror, marshmallows e pipocas. Das festas, dos castigos, dos presentes e do maior presente que havia em sua vida, que era ele mesmo, seu irmão, seu conforto, sua parte melhor de si mesma.

Pensou na importância gigantesca de tantas pessoas em sua vida, nas que faziam uma falta absurda, nas confidências regadas a cerveja, fofoca e House. Pensou com carinho em tantas, tantas pessoas, que os seus olhos foram assim pesando, a luz foi ficando mais fraca, a respiração mais lenta... Sentiu-se abraçada, mas estava sozinha, por certo era hora de dormir e seu anjo vinha a lhe acompanhar e acalmar seu desassossego de mulher em alma de menina.





quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Chove Chuva - Jorge Ben

Chove Chuva


Chove sem parar...


Pois eu vou fazer uma prece

Prá Deus, nosso Senhor

Prá chuva parar

De molhar o meu divino amor...



Que é muito lindo

É mais que o infinito

É puro e belo

Inocente como a flôr...



Por favor, chuva ruim

Não molhe mais

O meu amor assim...



Chove Chuva

Chove sem parar...



Sacundim, sacundém

Imboró, congá

Dombim, dombém

Agouê, obá

Sacundim, sacundém

Imboró, congá

Dombim, dombém

Agouê

Agouê, oh! oh! oh! obá

Agouê, oh! oh! oh! obá

Agouê, oh! oh! oh! obá...



Da Madame Bovary - de Gustave Flaubert:

"Desejava talvez fazer a alguém a confidência de todas estas coisas. Mas explicar um inexplicável mal-estar,
que muda de aspecto como as nuvens e que se move em turbilhão como o vento? Faltavam-lhe, pois, palavras, ocasião e coragem."

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

PRETO NO BRANCO









Era uma imensidão sem fim. O branco da neve expressava o que raramente se faria palpável em outras situações: o nada total e completo era também o todo e o tudo.

Oliver e Clara. Eles e mais nada. Dois pingüins roliços e felizes caminhando num infinito branco até cansar. E quando cansavam, paravam. E quando paravam se olhavam num fundo tão fundo e sem tamanho, quanto aquele branco sem fim que os rodeava. E aí então, o preto das retinas ― um pingo no meio do vazio ― se tornava o tudo e manchava o céu e manchava o gelo e coloria a vida dos dois exatamente com a ausência delas: era o preto e o branco, o tudo no nada, mas eles nem precisavam de mais nada... Pelo menos era o que pensavam.

Clara adorava sardinha. Oliver salmão. Clara preferia a noite. Oliver o liso do chão. Clara se animava toda cada vez que mergulhava, que passeava, que comia, que abraçava Oliver. Oliver se animava em assistir Clara.

Isso não só bastava porque era tudo o que ele tinha, mas porque se Oliver pudesse escolher qualquer riqueza, qualquer dádiva, qualquer coisa nesse mundo IN-TEI-RO, ele escolheria ser exatamente o que é: O pingüim mais feliz de toda a Antártida com a companheira mais interessante e incomparável.

Oliver achava a coisa mais incrível o jeitinho que ela caminhava e balançava o seu corpinho numa dança tímida. Adorava as milhares de histórias que ela lhe contava até tarde, até dar sono, até as estrelas se espreguiçarem ao raiar do dia. Acho que isso era felicidade. E se não fosse, ele gostava assim mesmo, não fazia questão que nada mudasse.

Ah Oliver... Todo pingüim apaixonado se esquece de um fato tão óbvio... Se a vida que tens lhe basta porque há essa companheira incrível ao seu lado, é porque ela não é comum. E em barriga de pingüins não comuns roncam sonhos quentes. Você já deveria prever que foi exatamente o espírito aventureiro dessa pequenina que te encantou, desde o primeiro gracejo, que vai tirá-la de ti. E que lugar nenhum consegue prender garotas assim. Nem lugar, nem ninguém.

E assim foi. Deu dor no coração de Clara tendo que voar pra um longe mais quente e deixar o coraçãozinho de Oliver cada dia mais frio. Não é que ela o amasse menos. Na verdade, não havia culpados. Ela só precisava demais de mais. De um mais lá na América do Sul. Precisava conhecer outras cores, coisas, pessoas, amores.

Ela se apaixonou por uma música linda, triste, que ora parecia um choro, como de um gato que quando emite sons, nunca são em vão. Ora com seu próprio choro encolhida num cantinho, olhando a lua e lembrando de quando a olhavam a dois. Deu uma saudade apertada aquele dia de Oliver. E ela quase pegou o caminho de volta. Mas ainda não estava pronta. Prometera um dia voltar buscá-lo. Não hoje.

Clara leu todos os livros que explodiam borboletas em seu estômago. Aprendeu que as músicas que a abraçavam era blues e jazz. Visitou os lugares mais bizarros e lindos. Volte e meia dava vontade de contar tudo pro Oliver. Clara experimentou todos os peixes que pode. Aprendeu novas danças... E até conheceu novos amores. Pra cada um, dedicou um carinho único. Mas o difícil é que cada vez que tentava um novo amor, notava que não havia pingüim que se encaixasse assim, tão bem. Oliver nem era tão bonitão. Era meio bobo e adorava irritá-la até ela dar umas bicadas nele. Aí ele pedia desculpas, ela ria e os dois se abraçavam e viravam um só.

A quentura da vida nova nunca acalmou, era indescritivelmente bom tudo o que ela havia conseguido até então. Mas às vezes acontecia uma coisa estranha que passou a acontecer com mais e mais freqüência. Era uma inquietude, um desassossego, uma vontade de-não-sei-o-quê que não passava nunca. E quando essa ansiedade a acordava no meio da noite, ela pegava o telefone na mão, ligava pro Oliver, chorava horrores prometendo voltar pra vida deles no dia seguinte.

Não. Mentira. Ela não conseguiria desistir de seus sonhos, sonhos que eram só seus, nem mesmo pelos sonhos que sonhara a dois. Ela acordava com o coração palpitando, com uma tristeza que doía demais, demais, demais. Respirava fundo e não dormia mais, ficava pensando por horas em tudo que a vida lhe proporcionara. E descobriu que morria de saudades da paz, do sossego que o seu Oliver, sempre seu, lhe causava. Não tinha certezas, só dúvidas. Ligou a luz, acendeu um cigarro, abriu uma latinha de sardinhas e uma garrafa de vinho, ligou a TV e lá ficou até o sol engatinhar. Deu saudade da sardinha que Oliver pegava fresquinha toda manhã.



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