Toda noite a Gata Amarela sentava-se à janela e esperava ansiosa pela chegada do seu beija-flor. Toda noite? Sim, aquele beija-flor preferia chegar junto com o orvalho, tecendo entre uma bicada e outra poesia com o pólen recém umedecido. Poesia para sua Gata Amarela. Achava a luz do sol um tanto incomodativa, é que o Beija-Flor Noel não saía beijando todas as flores oferecidas que se abriam em pétalas perfumadas e aveludadas. Noel preferia a noite porque não gostava de ser tão pequenino, e com a luz da lua, sua sombra se espalhava gigantescamente na janela da Gata Amarela.
Ninguém entendia como era possível ela, altiva, tão dona de si, tão persa, tão macia, tão nobre, tão felina não escolher um bichano para ronronar seu amor. Bem, talvez seja porque ela não tenha escolhido. Essas coisas a gente não escolhe mesmo, quando percebemos já fomos escolhidos e envoltos e seduzidos e já é tarde demais, ou quem sabe muito cedo. Cedo para ronronar uma história nova. Tarde para desistir antes de começar, só porque se vê o medo do novo à nossa espreita e fazemos de conta que não é conosco. O medo bem sabe que sabemos, mas tão egocêntrico se prefere misterioso.
As passarinhas da vizinhança cantarolavam o dia todo canções de amor a Noel na vã esperança de tocar o coraçãozinho daquele Beija-Flor lustroso e azul. Noel nem ouvia, ou quem sabe ouvisse, mas levantava um pouco mais o volume do jazz no seu ninho e punha-se a praticar notas incríveis em seu saxofone, notas macias, notas longas, doloridas de tanta beleza para chegar ninando a Gata que não saía da janela.
É... era mesmo um amor desses de dar desatino na idéia de qualquer bicho. A dona da Gata não abria a janela com medo que ela escapasse. Noel bicava com toda sua masculinidade para abrir a porta dos braços, ou melhor, dos abraços da Amarela. E era nessa hora que a dona fechava ainda mais a janela da Amarela. –Já pensou se o beija-flor entra? Já pensou que triste cena, a Amarela abocanhando e dando fim a esse pequeno? Pobre Dona, não sabia nada mesmo dos encantos e encontros do amor...
Tinha gente que fazia piada, tinha gente que atiçava, tinha gente que não parava, só não tinha gente que acreditava. E Amarela ronronava mais e mais alto que qualquer pulmão felino conseguisse, ela explicava de todas as formas que podia que não abocanharia, mas amaria, amaria, amaria. Mal sabia Amarela que isso era bem a cara dela. Que isso, ela já fazia. Amava Noel mesmo pela janela. Não havia amor de todo tipo nesse mundo? Amor de internet, de portão, de parente? O dela era amor de janela. Mal sabia Amarela que Noel amava e amava e amava muito ela, mesmo assim, com um vidro separando, mesmo começado de repente. Por que era assim mesmo que se fazia possível beijar Ela.
Às vezes Noel simplificava, chamava Amarela de Ela, num verso aqui, numa música, numa pintura de aquarela. Noel era artista, ou pelo menos tinha alma de poeta, alma de quem transborda sensibilidade pelos poros. Amarela era lisa e passavam todo o tempo perfume nela. Ela até que gostava, porque assim, espirrava e espalhava seu cheiro num ar bem alto, bem longe que alcançasse os sentidos de Noel. Assim passaram-se meses, passaram-se anos, até que um dia a dona da Amarela mudou-se e levou junto Ela. Noel não sabia, na verdade nem Amarela. Continuou todas as noites a bicar na janela, a tocar jazz em seu ninho para Ela. Noel se encheu de um vazio tão denso que parecia estouraria a qualquer instante seu peito de dor. Um peito que sempre lhe pareceu tão pequeno, desatinado havia se transformado num abismo de pavor. Não agüentaria... Amarela, mudou de janela, mas não saía dela, mesmo nova, diferente e mais alta, olhava agora dia e noite a procura de seu beija-flor.
Foi quando uma ventania, dessas que fazem as folhas secas brincarem no ar e as sacolas plásticas dançarem pelas calçadas esquecidas pela rotina, que o perfume de Amarela chegou à sua retina, é que Noel entendia de perfumes, podia desenhá-los se assim o pedissem.
Descabido, descompassado, atordoado, Noel voou o mais alto que pode, bateu em galhos, machucou a asa, voou ainda mais rápido preenchido do encantamento que lhe provocava o perfume daquela gatuna que lhe roubara o canto.
Noel só pensava em beijar Ela, e achou finalmente a janela, nela uma fresta para o amor. Amarela, enternecida, colocou a frágil cabecinha para fora, empurrou seu corpo num lapso de medo e de ardor.
Era a primeira vez que os dois pairavam tão perto sem vidros. O único espelhamento que se fazia intenso agora era o reflexo um do outro nas retinas de cada um. Amarela até olhou para trás pra se despedir da dona. Mas gato não nasce pra viver preso. A menos que seja preso pelos beijos de um Beija-Flor.
É que ela não resistia à melancolia do som do jazz e aquele Beija-flor era tão azul... E os olhos tão firmes, que ela teve certeza que eram os olhos que a carregariam para sempre. Noel aproximou-se com milhões de batidas de asa para manter-se pairando como uma dobra no tempo daquela felina. Mas o descompasso mais forte era o Tum-tum-tum de seu coração que encantou ainda mais que qualquer jazz, até mesmo Blues (Amarela amava Blues).
O pequeno Noel saiu voando sem dizer nada, abandonou aquela gata apaixonada no parapeito do terceiro andar. Amarela não acreditava, pensou até em se atirar! Grande fora a surpresa, ao se virar, dar de cara com tal proeza, coisa mais linda estava para se inventar... Eis que surge Noel com uma margarida, tão branca, tão macia, fez Ela suspirar, um suspiro que meio tímido foi criando força e forma, tomou outras proporções, tomou conta dos dois, ela olhou para baixo, preparou bem as quatro patinhas, ele desesperado com medo da queda, acompanhou em câmera lenta os movimentos da felina até o chão.
Amarela machucou uma pata. Mas decidiu ser gata de rua e de Beija-flor. Assim, Noel cantava , cantava, cantava, mas agora não mais em janelas, só em portas, as pessoas abriam e viam Ela, lá posta, esperando um prato qualquer. Depois, saciada, saíam em uma saga à procura de uma flor feia. Amarela era possessiva, mas Noel também precisava se alimentar, então, com uma patada Ela esmigalhava aquelas flores abertas, Noel se deleitava com o pólen, mas agora diferente. Ela, uma gata muito esperta, umedecia com sua língua áspera de felina, o pólen espalhado para seu amor. Noel preferia, porque era assim que sentia o gosto da sua gata esparramado com o pólen doce de uma flor.