La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

"Una realidad invisible anda por todo el subterráneo, cuyo estrepitoso negror rechinante, sucio y cálido, apenas se siente. Todos han desejado sus periódicos, sus gomas y sus gritos; están absortos, como en una pesadilla de cansancio y de tristeza, en esta rosa blanca que la negra exalta y que es como la conciencia del subterráneo." - La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Soluço


Ando, ando, ando...
Não sei se chego a algum lugar.
A cabeça inflada parece pesar três vezes
                                           - o que sempre foi
E foi sendo que se deu conta do nó, da dobra em que
Volte e meia tropeçava.
A música entra e faz faxina.
As linhas entram e
Atormentam tudo, até mesmo o que outrora não estava.
E não estava?
Estava,
Mas agora fica ainda mais nebuloso e ondulado
E essas voltas, e essa roda-gigante-sem-fim que não só gira
                                            -vive à deriva da maresia
Causa náusea.
E o que sai não tem fundo, não tem cor, não tem tamanho.
O que sai é só um grande eco do silêncio. O antigo, maldito, velho,
Silêncio.

O cinza do arco-íris

Maria Catarina não era uma menina comum, disso ela sabia. Só achava estranho que as outras crianças olhassem, cochichassem, pensassem coisas que não fossem legais sobre a sua felicidade. Ora, se a felicidade é de cada um e a dela era dessas felicidades espichadas, enroladas, que dão suspiros e desatinos e cambalhotas só de se imaginar, por que é que as outras meninas olhavam para ela com pena, com dó?
Maria Catarina não entendia direito, e aqueles olhares se transformavam em nó, porque ela enrolava nas pontas dos cachinhos dos seus caracóis castanhos e assoprava bem forte, pra bem longe.
Maria Catarina tinha uma profissão muito importante, tão importante que as pessoas nem se davam conta disso, era pra além do que elas podiam imaginar. Sim, Maria Catarina era uma criança, tinha oito anos, usava cor-de-rosa, mas também azul e amarelo. Mas só uma criança importante como Maria Catarina podia ter uma profissão tão grande como a sua. Ela era guardiã de sonhos. Calma, eu já explico, mas antes, preciso contar um pouquinho mais da história da Maria Catarina.
Ela e a família moram numa casa com rodas, com um teto gigante, bem alto, bem colorido, gargalham o tempo todo, se maquiam o tempo todo e recebem visitas a maior parte do tempo. É que a Maria Catarina tem uma família de palhaços, eles moram num circo. Na verdade, eles moram em muitos lugares e em lugar nenhum. Eles gostam de dizer que moram no pedacinho das pessoas que levam e no pedacinho que se deixam nas pessoas. E se deixam mesmo em outro pedacinho maior de cada um que visita, que ri, que se emociona, que palpita com todas aquelas cores e todas aquelas luzes.
Dizem-se médicos das doenças invisíveis. Não que toda doença possa ser vista, mas tem um tipo de doença danada, que deixa o corpo paralisado, com vontade de fazer nada. O problema é que nada não se pode fazer, e não o fazendo já se faz e é aí mesmo que a danada toma conta!
É um tipo de doença que todo mundo já passou. Tem gente até que tem dia pra esperar essa doença chegar e hora pra deixá-la ir. É a tal da tristeza. Mas a família da Maria Catarina chama-a de falta de alegria. A alegria não é assim tão grande como a felicidade, mas com um tiquinho daqui e um tiquinho de lá, com vários tiquinhos e todas as cores, de repente a pessoa que vai visitar a família da Maria Catarina, sai, pode-se dizer, feliz!
Bom, agora posso explicar um pouco melhor a profissão tão importante da Maria Catarina. Adulto tem mania de explicação, eu sei, mas dessa vez vocês vão me dar razão. Adulto acha que criança não percebe quando a tal doença ataca alguém. E aí eles dizem que tem um cisco no olho, e vão logo mudando de assunto e não conseguem mesmo esconder, como se fosse feio falar que a danada pegou a gente!
Criança percebe logo de cara quando tem alguém doente de tristeza – todo tipo de gente!E aí vai dando uma vontade encolhida de ajudar, mas tão encolhida e dolorida que do nada explode no peito da gente e ou a gente ajuda a desfazer a danada da tristeza ou acaba ficando doente também E Maria Catarina tinha uma missão além!
Ela ficava numa janelinha azul que havia ao lado da entrada. Bem, na verdade era um rasgo, uma fenda. E de lá, ela espiava e catalogava no seu caderninho, cada criança, seu assento e seus olhinhos. Com esses três itens ela sabia que sonho palpitava no peito de cada uma. Corria ao palhaço e preparava as piadas. Indicava o assento e a receita exata, puft! Funcionava.
Mas houve um dia, desses bem nublados, com um vento raivoso quase levantando a tenda do circo... O pano parecia uma bandeira viva gritando uma dor ansiosa que ninguém entendia. As folhas foram invadindo sem pagar entrada, tomando conta da pipoca, dos assentos, do palco. Algumas grudaram até nas maçãs do amor.
Nesse dia algo inusitado aconteceu. Maria Catarina não prestava muita atenção nos olhos dos adultos, porque os sonhos deles geralmente são mais complicados. Mas quando aquela mulher entrou pela porta, ela percebeu um brilho de menina e aquilo a deixou inquieta, agitada, desconsertada. E não pode sossegar até contar ao palhaço confidente, aquele que ajudava a realizar as piadas certas para cada criança. Maria Catarina foi logo contando que não entendia, que não era possível, uma mulher, uma adulta, com aquele brilho de menina!
O palhaço lembrou a guardiã que felicidade é uma coisa muito íntima de cada um. Mas isso deixou a menina ainda mais confusa, porque a moça tinha sim um brilho, mas não de felicidade, sequer de alegria, era de uma tristeza calma, quase de uma agonia!
O palhaço entendeu menos ainda e correu espiar qual era a moça. Bolaram várias piadas. Maria Catarina posicionou-se atrás da cortina. O palhaço começou. Fez o primeiro gracejo direcionado a tal moça. A platéia extasiada ria e aplaudia e olhava. A moça nada. O palhaço fez o segundo gracejo. A platéia aplaudia euforicamente virando as cabeças de um lado pro outro procurando a tal moça. A moça? Nada. O palhaço já se sentindo fracassado tentou um terceiro gracejo. Percebendo seu desespero, a platéia ficou muda. A moça vendo os olhos tristes do palhaço já caído no picadeiro, maquiagem borrada, peruca laranja torta... Vendo a platéia inerte ao sofrimento daquele artista, levantou-se de seu assento e bateu uma palma. Todos olharam para aquela moça branquíssima em seu vestido cinza. Deu um passo e outra palma. E assim, freneticamente, palmas foram brotando de suas mãos num barulho seco, cheio de um vazio estranho. E dessas palmas brotaram uma vontade doida de dar colo. E a moça de cinza caminhou até o picadeiro, sentou-se na areia e colocou a cabeça triste e borrada do palhaço no seu colo. As pessoas, sem entenderem direito o que estava acontecendo, levantaram de seus assentos pra observar melhor aquela cena.
Maria Catarina já tinha entendido tudo! A moça de cinza não era triste não. Só não era igual a todo mundo. Ela não ouvia do mesmo jeito que as pessoas que estavam ali. Ouvia com a alma, botava reparo nos movimentos e nas cores. Muita gente podia achar aquilo um defeito horrendo. Maria Catarina achou o máximo, caminhou de dentro da cortina, sentou-se ao lado da moça de cinza e deu-lhe um nariz de palhaço. A moça olhou, marejou o peito de uma alegria de quem encontra entendimento, colocou o nariz vermelho e, juntos, Maria Catarina, a moça de cinza e o palhaço, levantaram de mãos dadas em silêncio. O meio do trio ouviu os gestos. As duas pontas viram o som da platéia maravilhada com o final daquela cena.
Maria Catarina aprendeu que alegria é colorida, mas também pode ser cinza.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Mia, JASMIM

Calça jeans, all star verde e uma camiseta com alguma figura retrô desenhada no centro. Os cabelos espalhados, emaranhados em pequenos galhos secos, os olhos fechados e o pulmão num exercício calmo e profundo de abrir e fechar. Os braços e pernas relaxados, abertos, a grama pinicando onde toca a pele. Podia ouvir comunidades de formigas caminhando embaixo e em sua volta. Podia ouvir a grama crescendo só para lhe fazer macia a cama. Por um momento imaginou formigas transitando de uma orelha a outra, passeando pelo seu corpo em túneis e voltas, tão entregue estava àquele instante, achava justo ceder-se completa ao espaço. Imaginou joaninhas coloridas protagonizando um balé naquele gramado da cor do seu tênis.

Inspirou mais fundo e um aroma delicioso de jasmim lhe puxou lágrimas pra fora da lembrança. O cheiro do jasmim amanhecido e regado pelo orvalho lembrava seu pai. Manhãs que começavam com o sol ainda engatinhando e a chaleira já cantando na boca do fogão. O sabor amargo do chimarrão tinha gosto de colo e perfume de nós nos cabelos formados de tanto se enrolarem nos dedos de seu pai. Ele sempre a convidava para cheirar de perto os jasmins. Ela sempre pedia colo. Quando era pequena deixava as flores secarem para num ritual singular arrancar uma a uma, como se nesse gesto devolvesse vida à planta. Mas não era da árvore a graça de desdobrar encantamento, eram das flores secas, achava cada uma um singelo bouquet de uma delicadeza indescritível, o melhor dos perfumes desabrochado de presente toda manhã em sua janela. Da janela podia contemplar também o gramado como um tapete de veludo verde convidando a uma preguiça vespertina e o céu como um quadro de Monet, açucarado.


As lembranças tomaram conta de sua cabeça repentinamente, ganharam força, emocionaram, apertaram-se dentro dela provocando um frio e um arrepio que pareciam competir em uma corrida frenética que percorria todo seu interior. Abriu lentamente os olhos e cegou-se por alguns instantes, fechou-os novamente, lacrimejando reabriu e sentiu as nuvens a um palmo de sua face, o céu estava de um azul primavera com nuvens branquíssimas infladas como doces de algodão, macias, espalhadas por todo canto.

Sentiu uma tristeza tão calma e tão funda que sequer teve tempo de mudar a expressão, as lágrimas começaram a se jogar como suicidas de sua face. Quase podia escutá-las molhando a grama e depois a terra. Imaginou-as invadindo seus ouvidos e afogando as formigas.

Não sabia o porquê desse sentimento, mas cada vez mais aquela angústia tomava corpo e como que invadindo o seu, crescia dentro, imperativa, rígida... Sentiu vontade de correr, sentiu vontade de gritar, sentiu mais vontade de chorar e de se encolher e de se cobrir e de silenciar.

A vontade mais funda era a vontade da paz que se tem quando se é criança. Do aconchego e segurança do colo do pai, das histórias da mãe, do café da vó, do doce de leite do vô, do cheiro tão típico da casa da tia, do cheiro de mato picado atrás de casa quando brincava de ‘casinha’, o choro do irmão pequeno que mal sabia pronunciar as sílabas de seu nome, das brincadeiras com as crianças da rua, dos desenhos de manhã, da pipoca com refrigerante e filme e cobertor numa tarde fria. Saudade de alguém que já se foi, saudade de um tempo que acabou.

Fechou e abriu novamente os olhos. Mas estes já não eram os mesmo e a angústia transformou-se em força e a saudade em lembrança, e a lembrança em carinho. A tristeza foi-se e nasceram alguns espinhos, mas tantos, tantos, tantos jasmins, que a sala toda se embriagou de um perfume aveludado.

Era uma mulher com gracejos de menina e se orgulhava disso.

Gata Amarela.

Toda noite a Gata Amarela sentava-se à janela e esperava ansiosa pela chegada do seu beija-flor. Toda noite? Sim, aquele beija-flor preferia chegar junto com o orvalho, tecendo entre uma bicada e outra poesia com o pólen recém umedecido. Poesia para sua Gata Amarela. Achava a luz do sol um tanto incomodativa, é que o Beija-Flor Noel não saía beijando todas as flores oferecidas que se abriam em pétalas perfumadas e aveludadas. Noel preferia a noite porque não gostava de ser tão pequenino, e com a luz da lua, sua sombra se espalhava gigantescamente na janela da Gata Amarela.


Ninguém entendia como era possível ela, altiva, tão dona de si, tão persa, tão macia, tão nobre, tão felina não escolher um bichano para ronronar seu amor. Bem, talvez seja porque ela não tenha escolhido. Essas coisas a gente não escolhe mesmo, quando percebemos já fomos escolhidos e envoltos e seduzidos e já é tarde demais, ou quem sabe muito cedo. Cedo para ronronar uma história nova. Tarde para desistir antes de começar, só porque se vê o medo do novo à nossa espreita e fazemos de conta que não é conosco. O medo bem sabe que sabemos, mas tão egocêntrico se prefere misterioso.

As passarinhas da vizinhança cantarolavam o dia todo canções de amor a Noel na vã esperança de tocar o coraçãozinho daquele Beija-Flor lustroso e azul. Noel nem ouvia, ou quem sabe ouvisse, mas levantava um pouco mais o volume do jazz no seu ninho e punha-se a praticar notas incríveis em seu saxofone, notas macias, notas longas, doloridas de tanta beleza para chegar ninando a Gata que não saía da janela.

É... era mesmo um amor desses de dar desatino na idéia de qualquer bicho. A dona da Gata não abria a janela com medo que ela escapasse. Noel bicava com toda sua masculinidade para abrir a porta dos braços, ou melhor, dos abraços da Amarela. E era nessa hora que a dona fechava ainda mais a janela da Amarela. –Já pensou se o beija-flor entra? Já pensou que triste cena, a Amarela abocanhando e dando fim a esse pequeno? Pobre Dona, não sabia nada mesmo dos encantos e encontros do amor...

Tinha gente que fazia piada, tinha gente que atiçava, tinha gente que não parava, só não tinha gente que acreditava. E Amarela ronronava mais e mais alto que qualquer pulmão felino conseguisse, ela explicava de todas as formas que podia que não abocanharia, mas amaria, amaria, amaria. Mal sabia Amarela que isso era bem a cara dela. Que isso, ela já fazia. Amava Noel mesmo pela janela. Não havia amor de todo tipo nesse mundo? Amor de internet, de portão, de parente? O dela era amor de janela. Mal sabia Amarela que Noel amava e amava e amava muito ela, mesmo assim, com um vidro separando, mesmo começado de repente. Por que era assim mesmo que se fazia possível beijar Ela.

Às vezes Noel simplificava, chamava Amarela de Ela, num verso aqui, numa música, numa pintura de aquarela. Noel era artista, ou pelo menos tinha alma de poeta, alma de quem transborda sensibilidade pelos poros. Amarela era lisa e passavam todo o tempo perfume nela. Ela até que gostava, porque assim, espirrava e espalhava seu cheiro num ar bem alto, bem longe que alcançasse os sentidos de Noel. Assim passaram-se meses, passaram-se anos, até que um dia a dona da Amarela mudou-se e levou junto Ela. Noel não sabia, na verdade nem Amarela. Continuou todas as noites a bicar na janela, a tocar jazz em seu ninho para Ela. Noel se encheu de um vazio tão denso que parecia estouraria a qualquer instante seu peito de dor. Um peito que sempre lhe pareceu tão pequeno, desatinado havia se transformado num abismo de pavor. Não agüentaria... Amarela, mudou de janela, mas não saía dela, mesmo nova, diferente e mais alta, olhava agora dia e noite a procura de seu beija-flor.

Foi quando uma ventania, dessas que fazem as folhas secas brincarem no ar e as sacolas plásticas dançarem pelas calçadas esquecidas pela rotina, que o perfume de Amarela chegou à sua retina, é que Noel entendia de perfumes, podia desenhá-los se assim o pedissem.

Descabido, descompassado, atordoado, Noel voou o mais alto que pode, bateu em galhos, machucou a asa, voou ainda mais rápido preenchido do encantamento que lhe provocava o perfume daquela gatuna que lhe roubara o canto.

Noel só pensava em beijar Ela, e achou finalmente a janela, nela uma fresta para o amor. Amarela, enternecida, colocou a frágil cabecinha para fora, empurrou seu corpo num lapso de medo e de ardor.

Era a primeira vez que os dois pairavam tão perto sem vidros. O único espelhamento que se fazia intenso agora era o reflexo um do outro nas retinas de cada um. Amarela até olhou para trás pra se despedir da dona. Mas gato não nasce pra viver preso. A menos que seja preso pelos beijos de um Beija-Flor.

É que ela não resistia à melancolia do som do jazz e aquele Beija-flor era tão azul... E os olhos tão firmes, que ela teve certeza que eram os olhos que a carregariam para sempre. Noel aproximou-se com milhões de batidas de asa para manter-se pairando como uma dobra no tempo daquela felina. Mas o descompasso mais forte era o Tum-tum-tum de seu coração que encantou ainda mais que qualquer jazz, até mesmo Blues (Amarela amava Blues).

O pequeno Noel saiu voando sem dizer nada, abandonou aquela gata apaixonada no parapeito do terceiro andar. Amarela não acreditava, pensou até em se atirar! Grande fora a surpresa, ao se virar, dar de cara com tal proeza, coisa mais linda estava para se inventar... Eis que surge Noel com uma margarida, tão branca, tão macia, fez Ela suspirar, um suspiro que meio tímido foi criando força e forma, tomou outras proporções, tomou conta dos dois, ela olhou para baixo, preparou bem as quatro patinhas, ele desesperado com medo da queda, acompanhou em câmera lenta os movimentos da felina até o chão.

Amarela machucou uma pata. Mas decidiu ser gata de rua e de Beija-flor. Assim, Noel cantava , cantava, cantava, mas agora não mais em janelas, só em portas, as pessoas abriam e viam Ela, lá posta, esperando um prato qualquer. Depois, saciada, saíam em uma saga à procura de uma flor feia. Amarela era possessiva, mas Noel também precisava se alimentar, então, com uma patada Ela esmigalhava aquelas flores abertas, Noel se deleitava com o pólen, mas agora diferente. Ela, uma gata muito esperta, umedecia com sua língua áspera de felina, o pólen espalhado para seu amor. Noel preferia, porque era assim que sentia o gosto da sua gata esparramado com o pólen doce de uma flor.

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