La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

"Una realidad invisible anda por todo el subterráneo, cuyo estrepitoso negror rechinante, sucio y cálido, apenas se siente. Todos han desejado sus periódicos, sus gomas y sus gritos; están absortos, como en una pesadilla de cansancio y de tristeza, en esta rosa blanca que la negra exalta y que es como la conciencia del subterráneo." - La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Acordes

Acordou de sopetão com um grito: MARIA! - Que se estendeu por toda a casa ecoando dentro de sua cabeça por uns 30 segundos. - Coração galopando no peito como um animal selvagem prestes a explodir a pele que o separa do mundo. Sentou-se na cama, os lençóis estavam encharcados, o cabelo desalinhado.


Apertou forte a mão contra o peito na tentativa de domar aquele movimento e acalmando-o acalmar-se a si mesma. Já era manhã, mas o celular ainda não havia despertado. Olhou em volta e sentiu-se tão intimamente observada que resolveu de imediato cobrir-se com o roupão atoalhado.

Levantou e sentiu-se novamente observada e pior: seguida. Precisava de algum tipo de som para se distrair. Pensando nisso enquanto caminhava em direção à televisão algo caiu na área de serviço. Engoliu o grito seco que não aconteceu, que fora castrado por um calafrio molhado que percorria toda sua espinha.

Respirou fundo, pensou em coisas boas. Ligou a TV e começou a trocar de canal. A boca estava muito seca. Foi até a cozinha, preparou um café preto, sentou-se no sofá vermelho e acendeu um cigarro light. Tragou como se fosse a última ação que precedesse a morte.

A morte. Não achava que a temia, temia o hiato que a separava da vida concreta. O buraco, a margem e as coisas nela contida, sempre à espreita como cães magros de bar em bar aguardando migalhas, famintos.

O amargo do café se concentrou ao fundo da língua colorindo-a de um marrom claro. Desistiu da TV. Desistiu de resistir. Foi ao banheiro. Acompanhada? Despiu-se, tomou um banho quente, demorado, como nunca, até a pele dos dedos murcharem. Com o corpo ainda molhado espalhou sem economias o óleo de banho que tanto gostava. Terminou de se secar e vestiu-se.

Não iria trabalhar hoje. Não iria estudar hoje. Não iria seguir a rotina. Não, hoje. Pegou um ônibus que a levou até uma praia onde nunca estivera antes. Caminhou sem pressa, chinelos na mão, óculos escuros e a bolsa, tudo em seu devido lugar. Os cabelos soltos caíam volte e meia sob a face. Procurou um canto, estendeu a canga e sentou-se.

Fechou os olhos como nunca. Respirou o mais fundo que pôde. O cheiro do mar parecia niná-la num carinho de colo de mãe. O barulho das ondas quebrando nas pedras puxava da memória canções que a confortavam como uma xícara de café no inverno.

Estava tão exausta, tão cansada que mal sabia o que fazer. Então decidiu não fazer nada. Ficou naquela posição, olhos fechados, alma aberta por pelo menos uma hora. Sentia seu corpo trepidar, esquentando e balançando junto com o vento, era inevitável. As mãos e pernas formigavam num calor amortecido, mas que não era de todo desconfortável, era até revigorante.

Sentiu uma boca entreaberta lhe falar bem próxima ao ouvido. Tão próxima que podia sentir o calor do hálito. Abriu os olhos. Não havia ninguém. Olhou para o outro lado e viu uma criança se aproximando, vindo em sua direção.

Os olhos fortes, azuis, fixados aos seus. Foi se aproximando sem dizer uma palavra sequer, sentou-se no pedaço da canga que restava. Retirou duas maçãs da bolsa de pano. Uma verde e outra vermelha. Mordeu com gosto a verde, o suco escorria-lhe a face rosada daquela pele tão fininha. Ofereceu-lhe a vermelha. Um gesto tão imperativo que não ousaria negar. Mordeu também e saboreou a maçã lustrosa, observando ainda o garoto, que olhava agora para o mar.

Ficaram assim, lado a lado a tarde toda. Quando o sol começou a se pôr, o menino, ainda sem uma palavra, pegou as duas mãos dela. Olhou as palmas, o verso, fechou-as e esquentou-as com as pequenas mãozinhas de pele macia. Ajeitou o cabelo daquela moça aflita e encantada, assim, atrás da orelha. Com os olhos tão fixos nos seus, Maria sentia como se tivessem conversado por horas e horas e horas.

ACORDES! Acordou de sopetão com um grito. Que se estendeu por toda a casa ecoando dentro de sua cabeça por uns 30 segundos. - Coração galopando no peito como um animal selvagem prestes a explodir a pele que o separa do mundo. Sentou-se na cama, os lençóis estavam encharcados, o cabelo desalinhado.

Apertou forte a mão contra o peito na tentativa de domar aquele movimento e acalmando-o acalmar-se a si mesma. Já era manhã, mas o celular ainda não havia despertado. Olhou para mesinha ao lado de sua cama e petrificou-se ao ver uma maçã verde e outra vermelha, mordidas.

Mas hoje não sentira medo. Hoje sentira que algo havia mudado. Não se sentia mais só do lado de cá. As mãos estavam quentes. Passou muito do seu perfume preferido: Acordes, abriu a janela e estava chovendo. Não iria seguir a rotina. Não, hoje. Pegou o guarda-chuva e saiu, assim, sem rumo, à procura dela mesma.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Nostalgia

Fico imaginando o que será que separa aquele instante pós-banho, com pijamas com cheirinho de amaciante, à meia luz no quarto, o livro ao lado, na mesinha, os olhos levemente vermelhos, cansados, fechando... Do instante quase palpável em que o tempo brinca de carrossel e em seus desdobramentos puxa a memória da gente feito mandolate e nos leva aos cantos mais quentes e aconchegantes dos anos que se passaram.


Não havia lavado os cabelos, estava tão quente que usar o secador barulhento não soava como boa idéia. Pegou o sabonete de erva-doce cremoso e gastou quase a metade, como um carinho merecido espalhando vagarosamente a espuma branca por todas as curvas do corpo.

Pegou uma toalha nova, cheirou profundamente a sensação macia como um abraço demorado. Passou o hidratante preferido de ameixa. Colocou o pijama mais macio. O quarto cheirava a lavanda.

Na cama os lençóis preferidos: lilás desbotado tinham a cor calma do sono. Ligou o abajur, pegou um livro de contos e se propôs a ler até ouvir a música que seu anjo da guarda cantava para niná-la e protegê-la dos pesadelos.

Entre uma metáfora e outra começou o carrossel. Então, deitou-se de lado, pernas encolhidas, livro abraçado e começou a lembrar do cheiro da casa da tia de bolinho de chuva em dias chuvosos. Pôde sentir o gosto macio da canela com açúcar refinado e o cheiro do café passado misturado ao do cigarro do tio. E deu uma saudade tão funda que ficou assim, marejada por dentro de um sofrimento tão duro, mas tão calmo.

Lembrou das suas duas posses de pequena: uma vaca que chamou de xuxa e um pé de jasmim ao pé da janela. Não podia descrever o prazer que lhe causava encher as mãos com os pequenos cachos secos e sentir o perfume da flor invadindo a entrada da casa. Sempre ia com o pai fazer essa tarefa de fim de tarde.

Também não pôde descrever a dor quando lhe contaram que a xuxa viraria bife. Como podiam ser tão cruéis, ela deveria morrer de velha, sentiu-se roubada, injustiçada, violada aos seus 8 anos e passou meses com repulsa de carne que poderia ser de sua amiga.

Foi se lembrando das festas da família. O avô chegando com um saco de presentes para todos os netos. Ela, a única neta, a mais ansiosa em receber logo o brinquedo, fora esquecida e lá se foi o reboliço da família toda procurando o presente da pobre da mia!

A euforia das festas juninas no colégio, com rapadura, pé-de-moleque, pipoca, música, pau-de-sebo, canjica e tantas bandeirinhas coloridas que eram quase tão lindas quanto o teto dos supermercados cheios de ovos de chocolate.

Lembrou dos cheiros tão domingueiros. Mesmo com sono, era acordada por uma felicidade tão segura de que tudo estava bem, de que estava amparada pela família de todos os horrores do mundo.

E ouvia os fandangos alegres do pai gaúcho, o cheiro de churrasco espalhado pelo bairro todo, a mãe preparando as saladas e a maionese, a corrida de fórmula 1 na TV ou qualquer outro programa esportivo e sempre, a caipira de limão como aperitivo de mão em mão.

Lembrou de quando xis salada não era almoço, era lanche de final de semana e por isso mesmo, muito mais gostoso. De quando feijão, arroz, salada e alguma carne sempre se faziam na mesa. Sentiu vergonha da pressa de sua rotina que a levava a comer macarrão rápido e tantos pratos prontos sem o gosto do tempero da avó e o pior: sem a mesa rodeada de pai, mãe, irmão, avô, avó, gato...

Começou a avaliar tudo que havia proposto a si mesma, todas as metas, todos os limites, todos os sonhos. Achava de verdade que depois que alcançasse todos, seria feliz. E quão boba pôde se sentir agora que morava sozinha, que estudava num dos melhores lugares para sua área, que era independente, que tinha virado gente grande com contas vencendo, com compras de supermercado a serem feitas, com uma casa pra ser cuidada, ai, doeu, doeu não ter um colo largo, pra deitar e chorar e fazer o tempo do relógio girar ao contrário. Como era feliz, como era feliz, meu Deus e sequer desconfiava.

Não que fosse infeliz hoje, era realizada, se sentia forte, quase plena, se sentia mulher. Aprendera muitas coisas e começara a entender hoje tantas lições que ouvira em casa. Aprendera com dor e amor. Conhecera tanta gente, cuidara de tantas e de tantas outras não conseguiu. Mas deu uma dor tão funda crescendo e petrificando dentro de si que sentiu a própria alma comprimida e latejada, febril, num desespero manso de quem não quer mais crescer, de quem quer ser pra sempre o anjinho do pai e o coração da mãe, a menina da família.

Ficou triste por uns instantes, o nó crescido e apertado na garganta molhou todo o rosto e depois o travesseiro. Levantou, fez um chá de cidreira e adoçou com um pouco de mel, lembrou que se estivesse precisando de um calmante para dormir ou descansar o peito comprimido pela gripe era isso que sua mãe faria, sentiu-se mais perto dela agora.

Voltou para cama para ler mais um pouco e lembrou de uma música que ela nem gostava tanto assim, mas cada vez que tocava ficava mexida por dentro de saudade de seu irmão. Lembrou das noites adentro com filmes de terror, marshmallows e pipocas. Das festas, dos castigos, dos presentes e do maior presente que havia em sua vida, que era ele mesmo, seu irmão, seu conforto, sua parte melhor de si mesma.

Pensou na importância gigantesca de tantas pessoas em sua vida, nas que faziam uma falta absurda, nas confidências regadas a cerveja, fofoca e House. Pensou com carinho em tantas, tantas pessoas, que os seus olhos foram assim pesando, a luz foi ficando mais fraca, a respiração mais lenta... Sentiu-se abraçada, mas estava sozinha, por certo era hora de dormir e seu anjo vinha a lhe acompanhar e acalmar seu desassossego de mulher em alma de menina.





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