La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

"Una realidad invisible anda por todo el subterráneo, cuyo estrepitoso negror rechinante, sucio y cálido, apenas se siente. Todos han desejado sus periódicos, sus gomas y sus gritos; están absortos, como en una pesadilla de cansancio y de tristeza, en esta rosa blanca que la negra exalta y que es como la conciencia del subterráneo." - La negra y la rosa - Juan Ramón Jiménez

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A menina e a rosa

Sua rosa era vermelha. Cor viva que designava o ardor das paixões e o espesso e quente sangue que lhe percorria o corpo. As pétalas delicadas e aveludadas, de uma maciez que ao mesmo passo parecia frágil e extremamente densa na costura de sua tessitura.
Já havia sim apreciado o perfume de várias flores, mas sequer havia considerado a possibilidade de instaurar - como a brecha que faz uma faca ao dilacerar um corpo – a sensação de uma dependência assim nunca antes sentida.
Já na primeira vez que a viu, o vermelho intenso lhe corou a face numa quentura que começava pela ponta dos pensamentos, passava pelos fios de cabelos e nesse passeio chegava até a última ponta da última unha do último dedo do pé.
Depois do fogo vinha o vento que erguia todos os pelos e cabelos num arrepio infinito, como quem acaricia delicadamente um filhote. E dessa mistura de sensações brotou no coração indomável da menina um desejo e um medo sem tamanho.
Jamais suas vistas vividas avistaram antes rosa tão exuberante, até sabia que existiam outras parecidas, mas nunca antes uma num conjunto de toque, cor, perfume, ali tão perto, tão para ela.
Antes que pudesse duvidar, seu batimento cardíaco mais parecia titilar dentro de sua cabeça, tamanha voracidade a que se enraizava dentro de si. Quando posta assim, contra a parede pelos truques do destino, diante daquela rosa, imediatamente se entorpeceu e soube que tinha brotado dentro dela o desatino. Um carro contramão desenfreado, descontrolado que só sabia seguir em frente nessa insanidade deliciosa.
Sim. Mas nem só de delícias vive o desatino. E no momento seguinte ao entorpecimento a menina pensou logo:
-“E se eu não servir? E se ela não gostar de mim?”
Já perdera a conta de quantas voltas tinha dado o relógio durante as milhares de flores que apareceram para enfeitar e dar corda ao seu caminho. Ela até botava reparo em uma aqui e outra ali, mas a verdade é que nunca tivera disposição para cuidar de nenhuma delas. Ou enjoava logo do perfume, ou achava-as muito metidas, chatas; cansavam suas vistas pelo excesso de cores ou pior – por só saberem viver num entediante clichê mais detestável que o preto e branco: o cinza.
Sim, porque o cinza era das cores a mais fraca, era a que ficava sempre em cima do muro numa melancolia besta. Preferia mesmo era deixar o cinza para os dias de chuva, mas algumas flores eram tão bobinhas que não entendiam a maestria da chuva e se pintavam de cinza apagando a própria cor só para agradar a menina. E isso dava um cansaço danado nela, uma vontade de cortá-las fora.
E era mesmo o que ela acabava fazendo. Se as flores insistiam em aparecer em sua porta, ela dava um jeito logo de pegar a tesoura e dar um fim naquele brotamento. É por isso que gostava tanto das amigas pimentas e espadas de São - Jorge que além de devolverem vida à menina, protegiam-na e alegravam sua casa.
No entanto, aquela rosa tão imponente em sua beleza radiante a seduzira no exato instante em que olhos e pétalas se cruzaram. Estava decidida a tomá-la para si e assim cuidá-la com a devida atenção até o último de seus dias. Não saberia quanto tempo viveria, nunca quisera uma vida longa, mas olhar para aquela rosa era tão prazeroso que desejava trapacear o tempo para ganhar mais desatinos ao lado dela.
Foi nesse dia que a menina descobriu que tinha um coração desembestado. Foi por conta da rosa que ela sentiu todos os cheiros e gostos e toques do mundo inteiro ao mesmo tempo deixando-a com uma falta de ar exacerbada e um frio na barriga de quem pula lombada alta. E nesse caleidoscópio imagético de vivências e experiências, foi se tornando refém desse quase culto à rosa. Não. Era mais que uma devoção, era um amor de amantes cúmplices, desses amores em que palavras tão pouco bastam como são desnecessárias. Os olhos sim tagarelam sem parar por horas a fio enquanto o amarelo dos fios do cabelo da menina passeia pelo vermelho das pétalas da rosa.
E eis que dessa mistura de cores nasceu um amor como nunca antes visto, um amor tão fundo que não se sabia mais onde começava a menina e onde terminava a rosa. Ela chamou-a Zeus como a imponência do deus grego. E assim como os amantes gastavam horas a admirar a lua, a menina dedicava todos os versos e suspiros à rosa – Zeus. E dessa forma foram vivendo, juntos, menina e Zeus, felizes durante um tempo incontável.
E lá vem novamente o desatino descompassado atrás do amor. Como todo amor impossível de filme e livros, o amor dos dois também teve sua tragédia. Um dia a menina, que só tocara as pétalas de Zeus, teve muito medo de perdê-lo e num surto de insegurança e angústia agarrou com todas as suas forças a rosa e sentiu uma dor aguda dessas que fazem a gente perder o controle sob essa água salgada que salta dos olhos. Gota a gota, como trapezistas, as lágrimas foram pulando e descendo como que num escorregador gigante a face rubra da menina.
Zeus, petrificado por ver ferir sua amada só fazia chorar um desespero angustiante que partia o coração de quem visse a cena. Seu perfume inebriante se transformara, assim, num odor nauseante e ao passo que chorava, desbotava e o vermelho espesso escorria por seus espinhos misturando-se com o sangue da menina.
Zeus tinha agora um amarelo envelhecido. O velho amarelo que se costuma adquirir só com muito tempo. Com ele, ganhara a maturidade de quem valoriza uma preciosidade como o que vivia naquele momento. Sabia bem que se por ventura o destino lhe arrancasse a menina de suas pétalas jamais encontraria outra “dona” por quem viesse a desbotar.
O desatino - sentindo-se culpado pela dor da menina e pelo desbotamento de Zeus - recorreu ao sol e a lua e pediu que misturassem respectivamente sua quentura e frieza num pó mágico capaz de transformar a menina. A dor dos espinhos rasgando sua pele fora tanta que antes mesmo de sentir-se culpada ou triste, adormeceu, assim, com os espinhos fincados em suas mãos.
Ouviu ao fundo um flamenco espanhol que lhe devolveu quentura ao corpo - o desatino quando quer agradar, leva as loucuras às últimas conseqüências - ela podia bem reconhecer esse seu companheiro de longa jornada. Também ela gostava de flertar com a insanidade, a realidade às vezes era muito chata para se viver e muito dura para se agüentar. É claro que isso era só de vez em quando, não podia se dar ao luxo de enlouquecer, tinha muita coisa para dar conta antes disso.
Sentiu um pó em seu nariz que a fez espirrar. Espirrava com freqüência, isso era certo, mas esse espirro a fez acordar de supetão e antes que pudesse pronunciar qualquer palavra se dava conta de que havia se transformado em rosa. Uma rosa vermelha, imponente e exuberante tal qual seu amado Zeus.
Mas o sol e a lua perceberam que agora os amantes não podiam se tocar e teriam de conviver com a desgraça da saudade por toda a eternidade. Sendo assim, sol e lua que bem entendiam do mundo dos amantes, entraram num novo acordo onde por todos os dias de todos os anos que os amantes vivessem: sol regeria as 12 horas diurnas e lua as 12 horas noturnas banhando o casal com um manto de luz e calor.
Quando pela primeira vez menina e Zeus se tocaram como homem e mulher, tiveram a certeza de que jamais, jamais se separariam com ou sem espinhos, com ou sem desatino, com ou sem sol e lua, porque mais forte e maior do que qualquer coisa que existisse em toda a metafísica ou racionalidade era a plena sensação de uma felicidade incomparável e indescritivelmente quente com menina e Zeus, juntos.
Quem via a história de longe não entendia mesmo muito bem e achava tudo uma doidice descabida, mas tudo bem... Era assim e por isso mesmo que a loucura de um amor eterno e cúmplice era destinado às poucas criaturas que fossem fortes o bastante para se deliciar com a insana quentura da paixão sem se consumir por completo, pelo contrário, se revigorando a cada nova faísca.

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